Marilena
Chaui é respeitada como intelectual e militante política. Participou ativamente
da criação do Partido dos Trabalhadores – PT, em 1980. Ocupou o cargo de
secretária da cultura da cidade de São Paulo no governo de Luiza Erundina, de
1989 a 1992, à época eleita pelo PT.
Algumas
de suas obras a fizeram extrapolar o contexto acadêmico e atingir os leigos,
como em O que é Ideologia, que compõe a Coleção Primeiros Passos da editora
Brasiliense, e Convite à Filosofia, da editora Ática. É professora doutora
honoris causa, título concedido por duas instituições estrangeiras –
Universidade de Paris 8, França, e Universidade de Córdoba, Argentina. Possui
centenas de artigos publicados em periódicos de grande circulação e
científicos, dezenas de textos, entre livros e artigos publicados em obras de
outros autores, em português e francês. Tem se dedicado, principalmente, à
história da filosofia contemporânea, com foco em Baruch de Espinosa e
Merleau-Ponty.
É
professora titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), desde 1986.
Nascida
na cidade de São Paulo, a filósofa estudou o Primário, e grande parte do
Ginásio em Catanduva, no interior paulista. Voltou a São Paulo em 1956 para
terminar o Ginásio e cursar o Colegial Clássico (Ensino Médio) no Colégio
Estadual Presidente Roosevelt, bairro da Liberdade, para depois fazer graduação
e licenciatura em filosofia na Universidade de São Paulo (1960-65), em seguida
o mestrado (1966-67), apresentando a dissertação Merleau-Ponty e a crítica do
humanismo. Em 1971, defende o doutorado com a tese Introdução à leitura de
Espinosa. Em 1977, conclui o trabalho de livre-docência, 17Filosofia – Volume
14 A nervura do Real: Espinosa e a questão da liberdade, na mesma universidade.
Realizou o pós-doutorado na Bibliotéque Nationale de Paris (BNP), concluído em
1987. Encontro com a filosofia
O
pai da filósofa, Nicolau Chaui, era jornalista. A mãe, Laura de Souza Chaui,
professora, tornou-se indiretamente responsável pelo primeiro encontro da filha
com a filosofia. “Eu me encontrei com ela [a filosofia] muito cedo. Quando tinha 12 anos, li um livro de
minha mãe sobre filosofia da educação e fiquei deslumbrada com um sujeito
chamado Sócrates. Acho que não entendi quase nada do livro, mas a figura de
Sócrates ficou gravada em minha memória por causa de uma coisa fantástica
chamada maiêutica!”.
Mas foi na escola que conheceu melhor a
filosofia, estimulada por professores, por autores clássicos e disciplinas
voltadas ao estudo de idiomas. “No meu tempo havia, após os quatro anos de
Ginásio (no qual se aprendia latim, inglês e francês), o chamado Colegial
(dividido em Clássico e Científico), que durava três anos e nos preparava para
a universidade.”
“Durante os três anos de
Colegial Clássico (no qual se aprendia latim, grego, espanhol, inglês e
francês) tive aulas de filosofia, que era uma disciplina obrigatória – eram
cinco aulas semanais, isto é, com exceção do sábado, havia filosofia todos os
dias.” A ênfase dada à filosofia (e outras disciplinas das
humanidades) naquele momento era um dos caminhos para valorizar a formação
humanística e crítica dos alunos.
A
filósofa conta que no colégio Presidente Roosevelt havia estímulo à leitura, ao
debate, à participação, ao desenvolvimento de propostas, às novas ideias, à
participação política por meio do grêmio estudantil. “Para se ter uma ideia de como era o ensino, lembro que líamos Caio
Prado Júnior nas aulas de história do Brasil; César, Cícero e Virgílio, nas
aulas de latim; trechos de Homero, Sófocles e Platão, nas aulas de grego;
Racine, Corneille e Molière, nas aulas de francês; Shakespeare e Milton, nas
aulas de inglês; Cervantes e Machado, nas de espanhol; todos os poetas e
novelistas românticos, simbolistas e modernistas, nas de literatura portuguesa
e brasileira.”
Em
meio aos clássicos da filosofia e da literatura, Marilena Chaui descreve a aula
inaugural de filosofia na escola: “A
primeira aula teve início com o professor dizendo o seguinte: ‘Palamede da
Escola Eleata, Zenão de Eléia...’. Era uma classe de jovens com 15 e 18 anos de
idade, que nunca tinham ouvido falar de filosofia, muito menos de Zenão de
Eléia e menos ainda de quem poderia ser um tal de Palamede! O curso era de
lógica e as primeiras aulas foram sobre Parmênides, Zenão, Heráclito e Górgias
e o efeito sobre mim foi fulminante: descobri que era possível o pensamento
pensar sobre o pensamento, a linguagem falar sobre a linguagem e que havia uma
grande distância entre perceber e conhecer.”
Entre
bons professores aos quais atribui sua formação, destaca um. “Tive um professor extraordinário, João
Eduardo Villalobos, pessoa muito culta, irônica e cortante, que não fazia
qualquer concessão à nossa ignorância, mas nos tratava como capazes de entender
as aulas, pesquisar na Biblioteca Municipal, escrever razoavelmente. No meu
caso, Villalobos era, ao mesmo tempo, a iniciação ao pensamento e o desafio de
tomar conhecimento de um universo até então desconhecido e sem fim. Muitas
vezes, foram suas ‘tiradas’ sobre algum fato corriqueiro do cotidiano que me
fizeram olhar as coisas e as pessoas de uma maneira nova, problemática,
instigante. Fui fazer filosofia na universidade por causa dele, sem dúvida. Mas
também por causa de alguns outros professores.”
Vocação A licenciatura em filosofia só
confirmou o que Marilena Chaui já sabia. “Sempre
me vi como professora e, na época em que fiz a faculdade, éramos preparados
para o ensino, pois além do bacharelado, a licenciatura fazia parte de nosso
currículo, visto que a filosofia era disciplina obrigatória no que hoje se
chama ensino médio. Quase ninguém imaginava dar aula em universidades (isso era
para muito poucos), mas todos se destinavam espontaneamente para o ensino
médio.” Apesar da vocação e preparo para a docência no Ensino Médio, a
vivência como professora nessa etapa de formação foi curta. “Dei aula no Colégio Estadual Prof.
Alberto Levy, portanto, numa escola pública e, diga-se de passagem, das melhores.
Foi uma experiência muito gratificante, pois o ensino médio (isto é, o curso
Colegial) não tinha passado pelas sucessivas reformas que iriam desfigurá-lo e
mantinha a formação que eu havia conhecido no Colégio Estadual Presidente
Roosevelt, com ótimos alunos, muito diálogo entre os professores, todos
exigentes quanto à qualidade do ensino e ao desempenho dos alunos, e boa
infraestrutura de trabalho, particularmente, a biblioteca. Havia ciclos de
debates e palestras sobre Filosofia – Volume 14 19 assuntos variados da cultura
contemporânea com os professores da casa e com convidados especiais. No início
de cada semestre, os professores se reuniam por afinidade de suas matérias e
propunham trabalhar juntos determinados assuntos, mas ninguém usava o jargão da
interdisciplinaridade; era óbvio para muitos que suas matérias e temas se
entrecruzavam e que valia a pena um trabalho conjunto. Os alunos eram
receptivos e interessados e vários deles foram fazer filosofia na universidade,
segundo eles, estimulados pelas aulas.”
Para
as aulas, os professores do Alberto Levy usavam a voz em sala de aula e os
livros disponíveis em bibliotecas. “O
professor preparava suas aulas com o material pesquisado na Biblioteca
Municipal e, no caso dos alunos, como eram pouquíssimos os livros de filosofia
em português (talvez uns 10 ou 15 títulos), consultavam livros em inglês,
francês e espanhol (pois estudavam essas línguas no Colegial). Penso que o
mesmo se dava com as outras disciplinas, embora algumas, como as de ciências e as
de línguas contassem com livros didáticos, isto é, destinados especificamente
ao programa de cada ano escolar.” A professora valoriza a indicação de
livros de autores de referência em cada área, como uma ação comum dos
professores nas “grandes escolas públicas” na década de 1960, inclusive no Colégio
Alberto Levy. “A última coisa em que
alguém pensaria seria em livros com ilustrações, pouco texto e quase nenhuma
formação! Também nunca passaria pela cabeça de ninguém, em qualquer das
disciplinas, em dar provas na forma de testes de múltipla escolha. E um
professor se sentiria ofendido se recebesse um livro denominado ‘livro (ou
exemplar) do professor’, ensinando-o a dar aulas, fazer provas e corrigir
trabalhos!” Logo que defendeu a dissertação de mestrado no recém criado
programa de pós-graduação da USP, em 1967, foi convidada a lecionar no
Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
da mesma Universidade.
Em
tempos de ditadura Enquanto Marilena Chaui cursava graduação e licenciatura de
filosofia na USP, vivenciou um momento conturbado da histó- ria política
brasileira. De 1960 a 1965, viu quatro presidentes da República, uma renúncia
presidencial e um golpe militar, que mudaram os rumos do País. A ditadura
instaurada quando os militares tomam o poder não afetou inicialmente a educação
(até 1968); somente as universidades sofriam com as constantes perseguições a
professores e alunos.”Politicamente, a ditadura estava implantada, porém ainda
não haviam chegado os anos de chumbo do AI-5 e a educação ainda não era alvo da
Segurança Nacional nem estava encarregada de formar quadros para o ‘Brasil
Grande’ de Delfim Neto e Golbery do Couto e Silva.
As
perseguições haviam sido limitadas às universidades e, nestas, a professores
individualmente visados por suas ligações com o Partido Comunista ou com os
grupos que haviam apoiado o desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek ou as
Reformas de Base, propostas por Jango Goulart. Ou seja, o ataque ainda não visava
(como aconteceria a partir de 1969) à instituição universitária nem às
instituições do ensino médio, mas a indivíduos”.
Ao mesmo tempo, o ensino de filosofia no
Ensino Médio buscou um caminho para não ficar à margem das questões essenciais
naquele momento, de forma mais indireta. As fontes de inspiração e reflexão
para professores e estudantes eram o existencialismo do francês Jean Paul
Sartre e o engajado movimento cinematográfico Nouvelle Vague (Nova Onda),
relembra a filósofa, que também destaca as prioridades da escola naquele
momento: prezar e valorizar a cultura e
respeitar a ciência. O clima nas escolas também era diferente: “Do ponto de vista social e econômico,
a classe média ainda estava longe da indústria do vestibular, da competição
desvairada e do sucesso a qualquer preço, de maneira que, na escola pública,
havia uma atmosfera de camaradagem e cooperação tanto entre os alunos como
entre os professores.” Ao fazer uma retrospectiva sobre o ensino de
filosofia nos últimos 50 anos, Marilena Chaui acredita não ser possível uma
análise sem relacionar a disciplina com as demais matérias do Ensino Médio,
ainda que a exclusão da mesma pelos militares tenha sido justificada por
motivos de subversão, ao lado da pedagogia de Paulo Freire e da história do
Brasil, apresentada por Caio Prado Júnior, exemplos que cita. “Penso que é preciso inserir a filosofia
no mesmo contexto em que se encontraram as demais disciplinas de humanidades –
histó- ria, geografia, línguas e literatura brasileira e estrangeira. Filosofia,
história e geografia foram, de início, submetidas à ideia de educação moral e
cívica; em seguida, suprimido o ensino de filosofia, surgiu a disciplina
estudos sociais, reunindo história e geografia; e a disciplina expressão e
comunicação substituiu o ensino das línguas, além de suprimir o ensino de
latim, grego, francês e espanhol.”
As
reformas ocorridas no Ensino Médio brasileiro são resultado da orientação
político-econômica no País, segundo Marilena Chaui. Nas mudanças, diz ela, a
lógica do mercado prevaleceu em detrimento dos valores anteriormente cultivados
e preservados na escola: ”O primeiro
momento da reforma do ensino médio foi feito sob a égide do ‘Brasil Grande’, da
Segurança Nacional e das recomendações do Departamento de Estado
norte-americano (o chamado acordo MEC-Usaid) com ênfase nos conhecimentos
técnico-cientí- ficos e desinteresse pelas humanidades, pouco significativas
para o ‘milagre brasileiro’. O
ensino médio passou a ser visto de maneira puramente instrumental (e não mais
como período formador), isto é, como etapa preparatória para a universidade e
esta, como garantia de ascensão social para uma classe média que, desprovida de
poder econômico e político, dava sustentação ideológica à ditadura e precisava
ser recompensada. Tem início o ensino de massa. A chegada de grande contingente
de jovens aos vestibulares levou à instituição do vestibular organizado fora
das próprias universidades, às provas sob a forma de testes de múltipla escolha
e ao surgimento da indústria do vestibular.”
Para
a pensadora, a privatização da escola pública, a redução da atuação do Estado
na educação, a adequação do ensino às exigências do mercado e o controle
ideológico da classe média pelo diploma universitário são aspectos essenciais a
serem considerados para compreender a evolução do Ensino Médio nesse recorte
histórico.
Fonte:http://portal.mec.gov.br/index.phpoption=com_docman&view=download&alias=7837-2011-filosofia-capa-pdf&category_slug=abril-2011-pdf&Itemid=30192. p. 16 - 21
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